“Acontece amanhã às 8 horas na
Catedral o enterro de Robaldo. É com enorme tristeza que a nação se despede de
sua mais ilustre figura. Morto anteontem, sem sombra de dúvida injustamente e
ao realizar grande ato heróico. É o mínimo que se pode esperar de alguém tão
maravilhoso. Exemplo de integridade, bondade, caridade, bons costumes e de tudo
que ainda há de bom neste mundo cruel”. O texto continua aprisionado em duas
estreitas colunas ao canto direito: Uma foto do homem a quem a matéria se
referia ocupava todo o resto da primeira página.
Carregava um sorriso inocente emoldurado em um
bigode que, caso contrário, seria remetido à imagem de malandro ou porteiro.
Mas como tudo em relação a Robaldo, o bigode fora sacralizado. A pele morena,
numa mistura de nascença mais sol tomara um tom cinzento que dava aquele
gostinho de imortalidade e saudade. Tinha o nariz grande e redondo, levemente
arqueado devido à expressão fotografada. As sobrancelhas grossas e sebosas
quase alcançavam o cabelo – tão grosso e seboso quanto –, vencendo toda a testa
– curta e em declive – que as separava.
Vale fazer notar ao leitor – tanto como à
personagem – que Robaldo era famoso, querido e conhecido. Mas tanto que o
jornal julgara desnecessário identificá-lo com sobrenome. Sempre existira um
Robaldo: O Robaldo – aquele exemplo de beleza.
Beleza? O homem interrompeu a enumeração dos
valores do falecido e analisou o retrato rapidamente. Dele seus olhos fugiram
para seu próprio reflexo na janela. Voltaram para o pape, inconformados, e carregaram
este sentimento ao irem para as palavras impressas.
O ponto final fora um alívio para ambas as
partes: O leitor se cansara de tanta bobagem e o jornal se enojara com tanta
inveja. O homem decidiu que mudaria de jornal e o jornal, de homem.
Porém,
“Quem diabos é Robaldo?”
Se dita em voz alta na rua, ou em qualquer
outro lugar, senão enquanto na privacidade de sua casa, – apesar desta mesma
ter se dividido entre os que ficaram do lado do proprietário e os que ficaram
do lado de Robaldo – a frase seria imediatamente censurada. Com um “Pros diabos
a sua mãe! Pro céu, Robaldo!”, por exemplo. E isso com ele vivo. Imagine agora.
A curiosidade do homem pela identidade daquela
figura supostamente pública superara sua indignação por nunca ter ouvido falar
dela, fazendo-o voltar-se ao jornal. Mas este não estava pronto para uma
reconciliação. Ainda estava muito ofendido. E por isso, foi folha para todo
lado. E leite também – o copo que residia tranqüilamente sobre a mesa fora
arrastado para a confusão, derramando seu conteúdo branco-pastoso-matinal.
O jornal permanecera espalhado e nos pontos em
que havia mais se molhado era possível perceber
todo o seu horror. Em posição fetal ele se repetia que estava tudo bem.
Que o homem estava agindo daquele jeito por não conhecer Robaldo. Que Robaldo
resolveria tudo.
O homem entrou na padaria de pijamas e
chinelos. O relógio indicava quase sete. Todavia, o local estava deserto. Ele
se aproximou do balcão e olhou para os dois lados, procurando por alguém.
Ninguém. Inclinou-se para frente. Nada. Deu umas batidinhas na superfície de
madeira. O som se propagou... E sumiu, sem resposta. Frustrado e envergonhado:
Robaldo. E seu sorriso. Com certeza ele era o responsável. Não sabia como,
contudo. Mas era questão de tempo, claro. Tentando deixar a raiva de lado, o
homem respirou fundo e em um tom amigável e inquisidor disse:
- Bom dia?
Uma voz masculina, rouca e cansada, quase
chorosa, veio de dentro:
- Bom? – a voz teve a astúcia de dar um
pequeno intervalo, daqueles que não dão ao interlocutor espaço para responder,
mas que carregam o que é dito de emoção e dramaticidade. Bom?! Bom?! O que tem
de bom nesse dia?! Você não lê os jornais?!
Viu? Sabia. Foi com esse sentimento que
respondeu – deixando escapar, entretanto, uma pontinha de sarcasmo.
- Não! ... O que aconteceu?
Um senhor corcunda e gordinho, com a careca
avançada e o pouco que restava dos cabelos nas laterais e um bigode denso e
grisalho que lhe servia de lábio, saiu correndo de onde vinha a voz. Seus olhos
encontravam-se inchados e o rosto vermelho. Ele agarrou o homem pelo colarinho,
puxando-o para frente e forçando seu corpo contra o balcão. Enquanto o homem
tentava se soltar, o senhor esfregava um jornal em sua cara.
- Viu?! Viu?! Ele morreu! Ele! Sem ele, eu,
você, nós! Nós não somos nada! – a depressão caiu sobre o senhor com um
porrete, fazendo-o soltar o homem e curvar-se ainda mais. Resmungando, ele
enxuga uma nova remessa de lágrimas nas mangas da camisa.
Tanta tristeza abalou o homem, que engoliu em
seco.
- Vocês eram próximos?
O senhor fungou positivamente um fungado quase
infantil.
- Muito?
- Pelo amor de Deus! – disse erguendo os
braços para descê-los pesada e violentamente sobre o balcão. De quem Robaldo
não era próximo? Quem tão boa pessoa poderia desejar mal? Se existe um camarada
assim vivo, esse camarada merece morrer!
- Morrer? – de repente, o homem ficara mais
pálido e uma gota fria de suor desceu pelo pescoço.
- Acha que é muito pouco? Sim... Alguém tão
perverso deveria ser torturado primeiro, de todas as maneiras possíveis – o
senhor amassou o punho contra a palma aberta, imaginando o que faria com quem
se encaixasse no perfil descrito.
Antes que o senhor começasse a listar o que
faria ao maldito, o homem saiu de fininho.
O porteiro olhava fixamente para baixo e
quando o homem passou por este, não se prontificou a cumprimentá-lo, ou nem
algo próximo disso. Simplesmente continuou olhando para o chão. E fora ele e o
próprio homem, não havia mais ninguém, carregando, portanto, a atmosfera de
muita tristeza – que parecia influenciar até a decoração do ambiente, antes
viva e chamativa, mas que agora assumia aspecto funerário.
O botão do elevador fora apertado, iluminando-se de um amarelo putrefato, como se um monte de pus estivesse confinado em seus limites circulares, louco por liberdade. Assim, quando o elevador chegou e suas portas se abriram, via-se o interior almofadado em vermelho de um caixão e não as paredes tipicamente metálicas e o espelho paralelo à porta. Estava vazio e parecia não haver mais ninguém que fosse tomá-lo senão o próprio homem.
O botão do elevador fora apertado, iluminando-se de um amarelo putrefato, como se um monte de pus estivesse confinado em seus limites circulares, louco por liberdade. Assim, quando o elevador chegou e suas portas se abriram, via-se o interior almofadado em vermelho de um caixão e não as paredes tipicamente metálicas e o espelho paralelo à porta. Estava vazio e parecia não haver mais ninguém que fosse tomá-lo senão o próprio homem.
Tanta morbidez fê-lo repensar sua determinação
em trabalhar. Foi a melhor solução que encontrara para esquecer-se de Robaldo.
Porém, parecia que a morte tornara a personalidade onisciente e, senão esta, a
sua lembrança. Ela acompanhara o homem desde seu café da manhã até agora e não
parecia estar disposta a deixá-lo em paz. Mas a situação não seria aceita sem
luta. Por isso, deu meia volta enquanto o caixão se fechava: Arrependia-se mais
a cada passo que o aproximava do porteiro e quando o chamou, a sensação de que
merda estava fazendo consumia-o por completo.
- Ninguém veio trabalhar hoje?
A única resposta que conseguira por parte do
porteiro foi uma negação lenta e pesarosa da cabeça.
Devido à simplicidade e objetividade com quem
sua pergunta fora respondida, o homem se sentiu mais confiante e insistiu:
- Você viu meu chefe chegar?
O porteiro balançou que sim. Ainda com certo
receio, o homem agradeceu e quando estava no meio de desejar um bom dia, parou
no bom, acenou a cabeça e chamou o elevador novamente, entrando de supetão –
como tudo que fazemos quando abalados por medo – em seu tumbeiro moderno e,
naquele dia ao que parece, particular.
A porta do elevador se abriu. O homem sobreviveu
à viagem. Jogou-se para fora desesperadamente, tropeçando em si mesmo.
Respirando fundo, levantou-se e saiu com seus passos ecoando o som de grilhões
sobre o piso de granito. A gravata estava desajeitada, os cabelos desarrumados,
todavia, estava vivo e esse sentimento lhe permitiu um sorriso. Que não demorou
a desaparecer: A secretária, de seu posto de guarda, ante a porta que levava ao
corredor e eventualmente aos escritórios do homem e do chefe, respectivamente –
em disposição e importância, evidentemente –, encarava com o jeito de uma
amante nostálgica e arrependia um retrato de Robaldo. O homem se perguntou como
nunca reparara naquela fotografia. Mas depois se lembrou de que nunca tivera
interesse pela vida da mulher. Esta que, particularmente, ele achava bastante
chata.
Puxou a gravata de lado, arrumando-a, alisou o
cabelo e aproveitando-se do estado hipnótico em que a secretária se encontrava,
passou logo para o corredor e quatro passos rápidos e astutos a diante virou a
esquerda, abrindo a porta de sua sala e a fechando logo em seguida. Aliviado,
encostou-se na porta e permitiu-se respirar. Lá estaria livre de Robaldo.
Ao primeiro chiar do telefone, o homem
lançou-se desesperadamente sobre o cabo, arrancando-o violentamente da parede.
Entretanto, segundos depois constatara ter sido em vão. Ele se encontrava
esticado no chão e a silhueta do chefe sobre o vidro opaco da porta. O homem se
ergueu cuidadosamente, para então girar a maçaneta de mesmo modo. Planejara
apenas entreabrir a porta, dispensando educadamente o chefe, que não havia
recebido nenhum memorando informando-o sobre e já foi colocando o braço roliço,
a perna gorda e depois todo o corpo igualmente, senão mais, gorduroso.
As mãos do homem se abraçaram por de trás
deste nervosamente.
- Bom... Quer dizer... Como va... – nenhuma
das típicas expressões de início de conversa se viam viáveis, de forma que
depois da décima tentativa, deixou sua voz ser torturada lenta e calmamente
pelo silêncio.
O chefe acenou compreensivo. Com um andar
pesado, passou pelo homem e se sentou na borda da mesa que havia ao centro da
sala. A mesa rangeu sofrida de início, logo depois se resignando com a dor que
deveria suportar. Era seu dever, afinal.
- Eu te entendo, rapaz. É difícil falar depois
que ele morreu. É como se a razão de juntar consoantes e vogais e formar
palavras e proferi-las em certa ordem dotada de sentido tivesse morrido também
– falava acompanhando a descrição de movimentos que se resumiam a um
embaralhado de gestos circulares manuais, dotados de nenhuma ordem ou sentido
ou muito menos de ordem dotada de sentido. Mas a vida continua – seus olhos, já
tão apertados pelo inchaço de seu rosto, se apertaram ainda mais, tal qual seu
punho. A vida... Continua – as palavras se formaram quase que em suspiros.
O homem observava a tudo imerso em confusão –
não que ela houvesse o abandonado em algum momento e que, mais uma vez muito
provavelmente, seria interpretada como tristeza. Contudo, um lampejo de idéia
conseguiu atravessar o campo de batalha que era sua mente: O chefe sempre se
gabara de conhecer muita gente importante e adorava contar histórias sobre cada
um de seus amigos. Talvez se motivasse a repetir o costume, agora sobre Robaldo.
- O senhor o conhecia?
- Claro! Que tipo de pergunta é essa? Todo
mundo conhecia o Robaldo.
- Não, eu quero dizer... Bem? Vocês eram
amigos?
- Sim, senhor! Tenho a honra de dizer que era
um dos meus melhores amigos!
- E como se conheceram?
Os olhos do glutão se apertaram ainda mais e
ele encarou o homem como se pedindo piedade:
- Você quer me fazer chorar, rapaz? É isso?
- Não senhor, de forma alguma...
- Então por que me faz ter essas lembranças?
Por que? Já é difícil lidar simplesmente com isso! Robaldo! Morto! Não sei se
conseguiria levantar de manhã se começasse a me lembrar...
- Acho que ninguém conseguiria, senhor... –
disse o homem, tentando consertar a situação inconveniente que, mais uma vez,
Robaldo o colocara.
O chefe ergueu a mão e apertou firmemente o
ombro do homem. O contato era a manifestação física do apoio oferecido. Eles se
olharam e estabeleceu-se o sentimento de compreensão. Isso, obviamente, da
parte do chefe, porque o homem estava ainda mais perdido.
- Boa conversa.
O chefe se levantou, dando um tapinha amigável
nas costas do homem e saiu. Não que ele estivesse realmente só. A confusão
continuava ali e já estava à porta recebendo o desespero.
A maçaneta girou, produzindo um estralo. O
homem entrou e fechou a porta, trancando-a novamente. Virou-se para a cozinha e
a inspecionou, como se procurando por uma praga. E ali estava ela. O jornal,
que superara a trauma inicial, continuava, contudo, espalhado pelo chão. O
homem o recolheu calmamente, embolando-o conforme realizava a tarefa. O jornal
tentou pedir por ajuda, mas não passavam de ruídos. Nada a ponto de chamar a
atenção de um vizinho curioso. Terminado o trabalhou, o homem jogou o jornal no
lixo, tampando a lata com imensa satisfação.
Com o rosto aliviado, saiu da cozinha e foi
para a sala, acomodando-se no sofá. Tirou os sapatos com os próprios pés e os
deixou em contato com o piso de madeira. Esticou-se à direita, pegando o
controle da televisão e ligando o aparelho. Um carro descreve curvas sinuosas
em uma paisagem exuberante ao som de uma música conhecida, intercalada por
mensagens de como é bom aproveitar e viver a vida. O homem se permitiu relaxar
ainda mais, afundando no sofá. Seus olhos foram se cerrando até ficarem
praticamente fechados.
-
Morreu hoje Robaldo. Os detalhes de sua morte ainda são – seu primeiro impulso
foi fechar os olhos por completo e forçá-los a permanecer assim até suas
expressões faciais passarem a pedir por ajuda. Em seguida, suas mãos se chocam
violentamente com os ouvidos, na tentativa de obstruí-los de qualquer som.
- Mas não a dúvida da falta que tão grande
homem – não era possível. Seria a voz produto da sua própria mente? Seus dentes
se apertam violentamente e os músculos da mandíbula são claramente visíveis,
tal qual os capilares do pescoço.
Todo o seu corpo parecia ter adentrado em um
prefácio para um enfarte. Falta pouco, muito pouco. Seria uma solução. Não era
isso que o mundo esperava dele? De todos os seres do planeta, ele parecia ser o
único que nunca ouvira falar de Robaldo. Como Robaldo lhe escapara ao
conhecimento senão por sua própria vontade? Se alguém tão bom tão maravilhoso tão...
Robaldo não o quis como amigo em vida, – este mesmo alguém que teve amizade com
todo tipo de gente, de forma que não seria exagero dizer que se estivesse lá no
princípio seria amigo de Caim e Abel – então é porque ele não presta. Em
essência. Todo o seu eu. Nada mais justo que se eliminar. Uma eutanásia, dado o
contexto que se encontra. Talvez em morte! Sim, talvez Robaldo deixasse de lado
todas as suas falhas e aceitasse tê-lo, não, ainda não como amigo, seria muito?
Não importa. Se aceitasse sua companhia, seria suficiente: Descansaria em paz.
Sem abrir os olhos, suas mãos procuraram às
cegas pelo controle remoto. Encontrando-o, elas se uniram, segurando-o como se
fosse um revólver. Segurou-o por alguns segundos à sua frente, como se o
admirasse. Não o que segurava em realidade, porque seus olhos continuavam
fechados. Aproximou-o ainda mais, encostando-o por baixo do nariz. Inspirou
demorada e fortemente, permitindo-se sentir o cheiro da pólvora. Quando espirou,
relaxou os ombros e abaixou o revólver, posicionando-o sob o maxilar. Respirou
mais uma vez e apertou o gatilho.
A bala atravessa a cabeça do homem, abrindo
passagem de ponta a ponta, para isolar-se no teto após fazer com que seus
miolos explodissem cinematograficamente. A falta de vida fê-lo abandonar-se. As
mãos soltaram o controle, o corpo se largou no sofá e o pescoço cedeu para
trás.
Branco. Sem perceber, passou a enxergar o teto
do apartamento. E não havia buraco da bala onde deveria haver. O homem então
ergueu a cabeça com dificuldade – pesada, como se estivesse mesmo morta – e
olhou para baixo, encontrando um controle remoto e não uma arma. Ainda não
conseguia responder se tudo não passara de pura encenação ou se estava
alucinando no pós-morte. Caso fosse a segunda opção, o homem decidiu que
chegaria na seguinte conclusão: Morrer é um saco. Contudo, ao perceber que a
recente experiência lhe deixara – por mais estranho que pareça e isso levando
em conta até mesmo o que lhe acontecera recentemente – uma ereção, concluíra
que morto não estava. Por motivos óbvios.
- A prefeitura pede a todos que evitem a
utilização de automóveis amanhã, visando melhorar a circulação e o acesso ao
funeral. Considerando o grande defensor do meio ambiente que Robaldo fora em
vida, este jornal reforça o pedido, apoiando-o totalmente.
O sol estava à metade do meio dia quando o
homem abriu a porta. Parecia que o próprio amanhecer estava de luto – tanto que
impedia qualquer objeto de ter cores vivas ou alegres para passar o dia. Todas
as outras portas e janelas estavam fechadas. Então ele tratou logo de se
adiantar e fechar a sua, que produziu um rangido melancólico e triste. O homem
ajeitou o casaco e colocou o pé na rua. Não era o único. Antes de colocar o
próximo, deteve-se a observar os demais: Algumas poucas pessoas que iam todas
na mesma direção, rumo a uma avenida que despontava alguns quarteirões à
esquerda, num mesmo ritmo funerário.
Então, juntou-se a elas.
E virou a esquina.
O panorama que se seguiria inicialmente fora
planejado como uma grande e larga avenida, que em algum momento de sua
extensão, possuiria uma ponte, visando frisar o quão comprida se tratava deste
segmento de asfalto. Porém, não havendo razão temática ou dramática para tal –
ou seja, nem Robaldo nem seu funeral ganhariam alguma coisa com isso –, a
citada obra de engenharia que permitiria cruzar este certo curso de água fora
eliminada do projeto da cidade. Tal qual o curso de água. Isso não impedia,
contudo, certos elementos essenciais de continuarem... Essenciais:
1. O número de pessoas que percorriam em sua
peregrinação religiosa a avenida, na esperança, ou melhor, na fé de que em
algum momento despontariam de frente para a Catedral. 2. O sol que se erguia
lenta e penosamente fazendo com que toda essa massa humana projetasse sombras
para trás e à esquerda, como se estas próprias, por não constituírem matéria,
estivessem desejosas de dar meia volta, de não serem fortes suficientes para
ver Robaldo morto. 3. Parecia não haver
carro nenhum a usar a avenida ou nenhuma de suas ruas afluentes. 4. O olhar perdido com que o homem observava
a tudo isso, em seu plano geral. Tão perdido e abobalhado foram os passos que o
carregaram até a marcha. Se tivesse notado seu próprio movimento, pareceria que
seu corpo simplesmente se jogara para frente, movido por nada, e que o restante
simplesmente tentou acompanhar. Não que isso fosse simples, ou muito menos
lógico.
Tornar-se parte daquilo permitiu ao homem uma
observação mais próxima do que ocorria em meio aquele amontoado caótico de
gente em contato com o asfalto quente. Quando seu pescoço decidira ir pra
esquerda, sua cabeça acompanhou e os olhos não tiveram nem tempo de pensar a
respeito. Assim, com o mesmo atordoamento que se tem ao se ser retirado da cama
em uma hora extremamente inconveniente da manhã para uma situação nem um pouco
urgente, seus nervos oculares traduziram a imagem que se descrevia ao seu lado.
Um velho seguia o ritmo de seus iguais com um
dos pés engessado e duas muletas que lhe permitiam o progresso. Todavia, era
costumeiro que vizinhos o ultrapassassem uma hora outra. Tomados muito
provavelmente por aquele pensamento de que se não se apressarem, todos os
ingressos se esgotarão. Até que semelhante raciocínio resolveu cair sobre o velho,
que sem pensar duas vezes abandonou as muletas e passou a rastejar – o que o
deixaria particularmente mais rápido, contudo.
Assustado
talvez pela velocidade do velho, o homem se deteve, permitindo que o velho
representasse todo seu movimento por meio da imitação sua visão. Mas logo
outros caminhantes se chocaram com ele e muitos outros vinham atrás em fila com
o mesmo intuito, forçando-o a deixar seu espanto de lado e continuar. Seus pés
evidentemente aprenderam a lição, porque quando viu o que viu em seguida, estes
continuaram enquanto o que estava acima foi atrás apenas por pequenas questões
de anatomia.
Três dromedários seguiam em fila indiana,
amontoados de quinquilharias nas costas, além de três senhores distintos que se
vestiam de forma igualmente distinta. O primeiro deles se apresentava como
alguém saído de alguma fábula árabe. E, consciente disso, parecia se esforçar
ainda mais para entrar no personagem – o que conseguia por meio das expressões
que carregava no semblante reconhecidamente étnico. O segundo, negro e calvo,
estufava a barriga – marcada por estrias esbranquiçadas que, mascaradas de fé
cênica, passam a ser cicatrizes de guerra – ao mesmo tempo em que fazia notar
os músculos dos braços, que iam contra as argolas de latão pintadas de dourado,
próximas de se romper. Sua boca se fechava de forma carrancuda e superior. O
terceiro, o homem reconhecia, e era um velho japonês que tinha uma loja de
eletrônicos a poucas quadras de sua casa. Porém, de cima de sua montaria,
apresentava-se como um senhor do extremo oriente, vestido em uma armadura
samurai. Carregavam, respectivamente, mirra, ouro e incenso.
Então o olhar do homem pulou do senhor
nipônico para a quarta e última figura.
Atrás, uma mulher toda de branco e com o rosto
coberto por um véu, que após uma observação mais cuidadosa, constatou se tratar
de uma noiva, seguia fielmente os três magos orientais. Seu vestido matrimonial
brilhava incessantemente, porém, todo o brilho sumia ante a claridade da manhã,
sobretudo, da manhã do funeral de Robaldo.
Em outra ocasião, os três reis-magos e sua
estrela-guia – que teriam abandonado o nascimento de um novo Cristo para
comparecer ao funeral – pareceriam apenas quatro lunáticos que se vestiram de
forma exótica em um dia qualquer para chamar atenção. Ou talvez, três lunáticos
e uma noiva mais doida ainda que deixara a cerimônia ao se apaixonar por um dos
dromedários quando já no altar. Entretanto, não sendo um dia qualquer, como
todos bem sabem – com exceção do homem, que se encontrava em um estado de
transição, ou melhor ainda, iluminação –, qualquer necessidade de atenção ou
amor inter-racial estão perdoados e se vê em toda aquela loucura uma homenagem
ao protagonista da história: Robaldo.
E não era a única. Metros depois, o homem uma
longa fila de pessoas vestidas de preto que se chicoteavam a cada passo dado,
em punição por terem deixado Robaldo morrer. Não havia duvida para nenhum
daqueles flageladores que algo poderia ter sido feito para evitar o ocorrido e,
portanto, só restava o castigo eterno por terem falhado em algo tão importante
para a continuidade da vida como a conheciam. Por um momento, pensou se o
aceitariam como um dos seus ou se pelo menos lhe emprestariam um chicote.
Estaria se punindo não só por não ter impedido o trágico acontecimento, mas
também por não ter sequer conhecido Robaldo – o que, na mente de qualquer um
que percorria a ponte naquele momento, por si só já seria castigo suficiente.
O sentimento de perda daquilo que nunca tivera
serviu-lhe muito bem de chicote e se apegou a ele com o amor que poderia ter
dado a Robaldo, caso o tivesse conhecido em vida. Entre cada chicotada,
contudo, uma parte de sua mente sugeria se tudo aquilo tinha sentido, se ele
deveria mesmo se considerar culpado e declarar ele mesmo sua condenação pela
morte de alguém que nunca conhecera. Apenas para ser silenciada com o estalar,
seguido da dor dos espinhos fincados em seu cérebro, que se tornava
insuportável com a retirada dos mesmos, que saíam rasgando o que já haviam
furado.
O homem estava a cair de joelhos quando,
finalmente, o contorno da Catedral surgiu no horizonte. Sua boca estava seca e
rachada, seu rosto se desmanchava em suor e o sol continuava a castigá-lo,
precisamente de cima. Da mais alta das torres, uma cruz subia rasgando o céu. A
construção, como um todo, era realmente impressionante e seria interessante
descrevê-la nos mais mínimos detalhes, destacando a genialidade do arquiteto
responsável e explicitando o tempo gasto para o termino da obra e todas as
dificuldades que foram superadas. Todavia, pouco antes um outdoor emoldurara
uma foto de Robaldo. Os braços estavam abertos e por sobre os ombros de outras
duas pessoas, mas estas tinham suas identidades cortadas pela dimensão da
moldura. Aquele sorriso inocente e sincero deu forças ao homem para terminar a
jornada.
O coveiro enlouqueceu de vez. Isso seria uma
conclusão válida, considerado os caixões empilhados conforme eram despejados à
porta da Catedral. Todavia, vale suscitar que o comentário maldoso acerca do
estado mental do coveiro denotava loucura. E toda essa pirâmide múltiplas vezes
funerária poderia significar apenas um dia de folga sem aviso prévio e a
coincidente falta de pessoas previamente treinadas para cavar um buraco na
terra que o pudessem substituir. O que justificaria acusá-lo de qualquer
distúrbio mental seria o fato de toda aquela madeira preta estar pegando fogo.
No entanto, o coveiro realmente tirara o dia de folga e já estava dentro da
igreja. Quem tratava de jogar os caixões e colocá-los devidamente em chamas era
a própria família de cada um dos desafortunados que tiveram o azar de ter o
enterro marcado justamente no dia do funeral de Robaldo.
A morte de Robaldo fizera com que todas as funerárias optassem por antecipar a entrega dos mortos, de forma que os caixões tivessem dormido à porta da Catedral. Não só os do dia coincidente propriamente dito, mas os de toda a semana. Esta estratégia se aplicou a outros tipos de negócios. Por exemplo, muitos entregadores decidiram que para terem o dia seguinte livre deveriam entregar o máximo de pizzas possíveis. As encomendadas e as que viriam a ser. Isso não foi lá muito bom para as pizzarias e seus donos que acabaram fechando mais cedo. Não que pizzas e cadáveres tenham alguma relação.
A morte de Robaldo fizera com que todas as funerárias optassem por antecipar a entrega dos mortos, de forma que os caixões tivessem dormido à porta da Catedral. Não só os do dia coincidente propriamente dito, mas os de toda a semana. Esta estratégia se aplicou a outros tipos de negócios. Por exemplo, muitos entregadores decidiram que para terem o dia seguinte livre deveriam entregar o máximo de pizzas possíveis. As encomendadas e as que viriam a ser. Isso não foi lá muito bom para as pizzarias e seus donos que acabaram fechando mais cedo. Não que pizzas e cadáveres tenham alguma relação.
Voltando ao segundo grupo, ou melhor dizendo,
às suas famílias: Estas, sabendo do trágico ocorrido, tentaram de todas as
formas cancelar os ritos funerários encomendados. Mas já era tarde demais.
Restou-lhes o óbvio. Vestiram-se para os enterro de Robaldo como se fosse para
os de seus entes queridos e falecidos, foram ao enterro como se fosse o de seus
entes queridos e falecidos e chegando lá, vendo os caixões de seus entes
queridos e falecidos, trataram de dar um destino rápido aos restos mortais dos
seus entes agora queimados e falecidos.
O homem ignorou, como pôde, o cheiro de carne
e ternos e vestidos caros queimados e se amontoou à porta da Catedral com
muitas outras pessoas, no sonho – porque “tentativa” seria muito irreal levando
em conta o número de gente que chegou e chegava por Robaldo – de entrar. Sua
determinação era evidente em meio a tantos ombros, cotovelos, braços, mãos,
pernas e joelhos e pés. Foi-se empurrando, sem se importar com esta criança ou
aquela velhinha, até que conseguiu.
Dentro da Catedral a situação não era menos
animadora. As paredes pareciam cada vez mais que fossem ceder devido à
quantidade de pessoas que se aninhavam dentro de seus limites obviamente
limitáveis. Movendo-se, ou o mais próximo possível disso, por essa enorme massa
humana, o homem chegou até uma escada. Subiu-a com a mesma dificuldade – porque
até os degraus estavam ocupados –, mas ainda assim, chegou ao segundo andar, de
onde teria uma visão melhor das naves e acima de tudo, do altar – que fora
removido para dar lugar ao caixão de Robaldo.
Lutou por um lugar à beirada, agarrando-se ao
encosto de madeira com força. Alguns vizinhos o empurram de início, irritados,
para depois se acostumarem, ou melhor, ignorarem-no em favor de Robaldo. Todos
os olhares sob o sacro teto dirigiam-se a um único ponto e o homem não excedia
a regra. A cada segundo o caixão parecia mais próximo. Podia quase tocá-lo. E,
de repente, seu transe se quebrara por um som esganiçado e velho, um soluço,
que então desatou a chorar. Virou-se para contemplar o que era. E do mesmo
jeito muitos em volta imitaram, fazendo um círculo em volta da velha lacrimosa.
Meu filho! Mamãe! Como! Não! Justiça! Justiça! Por Deus! Por ele! Robaldo!
Seria a velha mãe de Robaldo? Ela?! O homem se lançou violentamente, tentando
romper o perímetro que se formara. Empurrou, socou, jogou e arranhou,
conseguindo pousar sua mão sobre o ombro dela. A velha o encarou, de olhos
molhados mas curiosos. A senhora é mãe de Robaldo? Como? A senhora. É a mãe de
Robaldo? Era como um filho... Para todas nós! Mas a senhora... Ele veio da
senhora? Era como se carregasse uma parte de cada uma de nós! Justiça! Por
Deus! Justiça! Não! Quer dizer, a senhora cuidou dele?! A senhora... Quem dera
tivéssemos cuidado melhor dessa criança tão boa... A culpa é nossa! Nossa! Sua
e... Cala a boca!
O homem se jogou contra a velha, mas alguém
próximo o deteve, jogando-o para trás. A multidão à volta se enfureceu e ele
foi sendo empurrado. Alguém empurrou demais.
A cada segundo o caixão parecia mais próximo.
Podia quase tocá-lo.
E o tocou.
O silêncio tomou conta da Catedral. E era como
se esse próprio reproduzisse o choque do corpo do homem com o sarcófago de
Robaldo. Olhou-se, em estarrecimento. Perguntou-se quem era aquele que caíra
partindo-se e consigo madeira e metal, por um momento.
O momento passou. E todos avançaram na direção
do caixão. Queriam uma parte de Robaldo. Se aquele estranho a tivera, tinham
também o direito.
Ricardo, volte a postar novos textos no seu blog. Adorava acessá-lo semanalmente, por mais que não houvessem postagens novas. E essa narrativa ficou excelente. (Sei que já te falei isso quando a li pela primeira vez, mas vale reforçar o elogio.)
ResponderExcluirLouquíssimo, Ricardo!
ResponderExcluir