sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Robaldo


“Acontece amanhã às 8 horas na Catedral o enterro de Robaldo. É com enorme tristeza que a nação se despede de sua mais ilustre figura. Morto anteontem, sem sombra de dúvida injustamente e ao realizar grande ato heróico. É o mínimo que se pode esperar de alguém tão maravilhoso. Exemplo de integridade, bondade, caridade, bons costumes e de tudo que ainda há de bom neste mundo cruel”. O texto continua aprisionado em duas estreitas colunas ao canto direito: Uma foto do homem a quem a matéria se referia ocupava todo o resto da primeira página.
 Carregava um sorriso inocente emoldurado em um bigode que, caso contrário, seria remetido à imagem de malandro ou porteiro. Mas como tudo em relação a Robaldo, o bigode fora sacralizado. A pele morena, numa mistura de nascença mais sol tomara um tom cinzento que dava aquele gostinho de imortalidade e saudade. Tinha o nariz grande e redondo, levemente arqueado devido à expressão fotografada. As sobrancelhas grossas e sebosas quase alcançavam o cabelo – tão grosso e seboso quanto –, vencendo toda a testa – curta e em declive – que as separava.
 Vale fazer notar ao leitor – tanto como à personagem – que Robaldo era famoso, querido e conhecido. Mas tanto que o jornal julgara desnecessário identificá-lo com sobrenome. Sempre existira um Robaldo: O Robaldo – aquele exemplo de beleza.
 Beleza? O homem interrompeu a enumeração dos valores do falecido e analisou o retrato rapidamente. Dele seus olhos fugiram para seu próprio reflexo na janela. Voltaram para o pape, inconformados, e carregaram este sentimento ao irem para as palavras impressas.
 O ponto final fora um alívio para ambas as partes: O leitor se cansara de tanta bobagem e o jornal se enojara com tanta inveja. O homem decidiu que mudaria de jornal e o jornal, de homem.
 Porém,
 “Quem diabos é Robaldo?”
 Se dita em voz alta na rua, ou em qualquer outro lugar, senão enquanto na privacidade de sua casa, – apesar desta mesma ter se dividido entre os que ficaram do lado do proprietário e os que ficaram do lado de Robaldo – a frase seria imediatamente censurada. Com um “Pros diabos a sua mãe! Pro céu, Robaldo!”, por exemplo. E isso com ele vivo. Imagine agora.
 A curiosidade do homem pela identidade daquela figura supostamente pública superara sua indignação por nunca ter ouvido falar dela, fazendo-o voltar-se ao jornal. Mas este não estava pronto para uma reconciliação. Ainda estava muito ofendido. E por isso, foi folha para todo lado. E leite também – o copo que residia tranqüilamente sobre a mesa fora arrastado para a confusão, derramando seu conteúdo branco-pastoso-matinal.
 O jornal permanecera espalhado e nos pontos em que havia mais se molhado era possível perceber  todo o seu horror. Em posição fetal ele se repetia que estava tudo bem. Que o homem estava agindo daquele jeito por não conhecer Robaldo. Que Robaldo resolveria tudo.

 O homem entrou na padaria de pijamas e chinelos. O relógio indicava quase sete. Todavia, o local estava deserto. Ele se aproximou do balcão e olhou para os dois lados, procurando por alguém. Ninguém. Inclinou-se para frente. Nada. Deu umas batidinhas na superfície de madeira. O som se propagou... E sumiu, sem resposta. Frustrado e envergonhado: Robaldo. E seu sorriso. Com certeza ele era o responsável. Não sabia como, contudo. Mas era questão de tempo, claro. Tentando deixar a raiva de lado, o homem respirou fundo e em um tom amigável e inquisidor disse:
 - Bom dia?
 Uma voz masculina, rouca e cansada, quase chorosa, veio de dentro:
 - Bom? – a voz teve a astúcia de dar um pequeno intervalo, daqueles que não dão ao interlocutor espaço para responder, mas que carregam o que é dito de emoção e dramaticidade. Bom?! Bom?! O que tem de bom nesse dia?! Você não lê os jornais?!
 Viu? Sabia. Foi com esse sentimento que respondeu – deixando escapar, entretanto, uma pontinha de sarcasmo.
 - Não! ... O que aconteceu?
 Um senhor corcunda e gordinho, com a careca avançada e o pouco que restava dos cabelos nas laterais e um bigode denso e grisalho que lhe servia de lábio, saiu correndo de onde vinha a voz. Seus olhos encontravam-se inchados e o rosto vermelho. Ele agarrou o homem pelo colarinho, puxando-o para frente e forçando seu corpo contra o balcão. Enquanto o homem tentava se soltar, o senhor esfregava um jornal em sua cara.
 - Viu?! Viu?! Ele morreu! Ele! Sem ele, eu, você, nós! Nós não somos nada! – a depressão caiu sobre o senhor com um porrete, fazendo-o soltar o homem e curvar-se ainda mais. Resmungando, ele enxuga uma nova remessa de lágrimas nas mangas da camisa.
 Tanta tristeza abalou o homem, que engoliu em seco.
 - Vocês eram próximos?
 O senhor fungou positivamente um fungado quase infantil.
 - Muito?
 - Pelo amor de Deus! – disse erguendo os braços para descê-los pesada e violentamente sobre o balcão. De quem Robaldo não era próximo? Quem tão boa pessoa poderia desejar mal? Se existe um camarada assim vivo, esse camarada merece morrer!
 - Morrer? – de repente, o homem ficara mais pálido e uma gota fria de suor desceu pelo pescoço.
 - Acha que é muito pouco? Sim... Alguém tão perverso deveria ser torturado primeiro, de todas as maneiras possíveis – o senhor amassou o punho contra a palma aberta, imaginando o que faria com quem se encaixasse no perfil descrito.
 Antes que o senhor começasse a listar o que faria ao maldito, o homem saiu de fininho.

 O porteiro olhava fixamente para baixo e quando o homem passou por este, não se prontificou a cumprimentá-lo, ou nem algo próximo disso. Simplesmente continuou olhando para o chão. E fora ele e o próprio homem, não havia mais ninguém, carregando, portanto, a atmosfera de muita tristeza – que parecia influenciar até a decoração do ambiente, antes viva e chamativa, mas que agora assumia aspecto funerário.
 O botão do elevador fora apertado, iluminando-se de um amarelo putrefato, como se um monte de pus estivesse confinado em seus limites circulares, louco por liberdade. Assim, quando o elevador chegou e suas portas se abriram, via-se o interior almofadado em vermelho de um caixão e não as paredes tipicamente metálicas e o espelho paralelo à porta. Estava vazio e parecia não haver mais ninguém que fosse tomá-lo senão o próprio homem.
 Tanta morbidez fê-lo repensar sua determinação em trabalhar. Foi a melhor solução que encontrara para esquecer-se de Robaldo. Porém, parecia que a morte tornara a personalidade onisciente e, senão esta, a sua lembrança. Ela acompanhara o homem desde seu café da manhã até agora e não parecia estar disposta a deixá-lo em paz. Mas a situação não seria aceita sem luta. Por isso, deu meia volta enquanto o caixão se fechava: Arrependia-se mais a cada passo que o aproximava do porteiro e quando o chamou, a sensação de que merda estava fazendo consumia-o por completo.
 - Ninguém veio trabalhar hoje?
 A única resposta que conseguira por parte do porteiro foi uma negação lenta e pesarosa da cabeça.
 Devido à simplicidade e objetividade com quem sua pergunta fora respondida, o homem se sentiu mais confiante e insistiu:
 - Você viu meu chefe chegar?
 O porteiro balançou que sim. Ainda com certo receio, o homem agradeceu e quando estava no meio de desejar um bom dia, parou no bom, acenou a cabeça e chamou o elevador novamente, entrando de supetão – como tudo que fazemos quando abalados por medo – em seu tumbeiro moderno e, naquele dia ao que parece, particular.

 A porta do elevador se abriu. O homem sobreviveu à viagem. Jogou-se para fora desesperadamente, tropeçando em si mesmo. Respirando fundo, levantou-se e saiu com seus passos ecoando o som de grilhões sobre o piso de granito. A gravata estava desajeitada, os cabelos desarrumados, todavia, estava vivo e esse sentimento lhe permitiu um sorriso. Que não demorou a desaparecer: A secretária, de seu posto de guarda, ante a porta que levava ao corredor e eventualmente aos escritórios do homem e do chefe, respectivamente – em disposição e importância, evidentemente –, encarava com o jeito de uma amante nostálgica e arrependia um retrato de Robaldo. O homem se perguntou como nunca reparara naquela fotografia. Mas depois se lembrou de que nunca tivera interesse pela vida da mulher. Esta que, particularmente, ele achava bastante chata.
 Puxou a gravata de lado, arrumando-a, alisou o cabelo e aproveitando-se do estado hipnótico em que a secretária se encontrava, passou logo para o corredor e quatro passos rápidos e astutos a diante virou a esquerda, abrindo a porta de sua sala e a fechando logo em seguida. Aliviado, encostou-se na porta e permitiu-se respirar. Lá estaria livre de Robaldo.
 Ao primeiro chiar do telefone, o homem lançou-se desesperadamente sobre o cabo, arrancando-o violentamente da parede. Entretanto, segundos depois constatara ter sido em vão. Ele se encontrava esticado no chão e a silhueta do chefe sobre o vidro opaco da porta. O homem se ergueu cuidadosamente, para então girar a maçaneta de mesmo modo. Planejara apenas entreabrir a porta, dispensando educadamente o chefe, que não havia recebido nenhum memorando informando-o sobre e já foi colocando o braço roliço, a perna gorda e depois todo o corpo igualmente, senão mais, gorduroso.
 As mãos do homem se abraçaram por de trás deste nervosamente.
 - Bom... Quer dizer... Como va... – nenhuma das típicas expressões de início de conversa se viam viáveis, de forma que depois da décima tentativa, deixou sua voz ser torturada lenta e calmamente pelo silêncio.
 O chefe acenou compreensivo. Com um andar pesado, passou pelo homem e se sentou na borda da mesa que havia ao centro da sala. A mesa rangeu sofrida de início, logo depois se resignando com a dor que deveria suportar. Era seu dever, afinal.
 - Eu te entendo, rapaz. É difícil falar depois que ele morreu. É como se a razão de juntar consoantes e vogais e formar palavras e proferi-las em certa ordem dotada de sentido tivesse morrido também – falava acompanhando a descrição de movimentos que se resumiam a um embaralhado de gestos circulares manuais, dotados de nenhuma ordem ou sentido ou muito menos de ordem dotada de sentido. Mas a vida continua – seus olhos, já tão apertados pelo inchaço de seu rosto, se apertaram ainda mais, tal qual seu punho. A vida... Continua – as palavras se formaram quase que em suspiros.
 O homem observava a tudo imerso em confusão – não que ela houvesse o abandonado em algum momento e que, mais uma vez muito provavelmente, seria interpretada como tristeza. Contudo, um lampejo de idéia conseguiu atravessar o campo de batalha que era sua mente: O chefe sempre se gabara de conhecer muita gente importante e adorava contar histórias sobre cada um de seus amigos. Talvez se motivasse a repetir o costume, agora sobre Robaldo.
 - O senhor o conhecia?
 - Claro! Que tipo de pergunta é essa? Todo mundo conhecia o Robaldo.
 - Não, eu quero dizer... Bem? Vocês eram amigos?
 - Sim, senhor! Tenho a honra de dizer que era um dos meus melhores amigos!
 - E como se conheceram?
 Os olhos do glutão se apertaram ainda mais e ele encarou o homem como se pedindo piedade:
 - Você quer me fazer chorar, rapaz? É isso?
 - Não senhor, de forma alguma...
 - Então por que me faz ter essas lembranças? Por que? Já é difícil lidar simplesmente com isso! Robaldo! Morto! Não sei se conseguiria levantar de manhã se começasse a me lembrar...
 - Acho que ninguém conseguiria, senhor... – disse o homem, tentando consertar a situação inconveniente que, mais uma vez, Robaldo o colocara.
 O chefe ergueu a mão e apertou firmemente o ombro do homem. O contato era a manifestação física do apoio oferecido. Eles se olharam e estabeleceu-se o sentimento de compreensão. Isso, obviamente, da parte do chefe, porque o homem estava ainda mais perdido.
 - Boa conversa.
 O chefe se levantou, dando um tapinha amigável nas costas do homem e saiu. Não que ele estivesse realmente só. A confusão continuava ali e já estava à porta recebendo o desespero.

 A maçaneta girou, produzindo um estralo. O homem entrou e fechou a porta, trancando-a novamente. Virou-se para a cozinha e a inspecionou, como se procurando por uma praga. E ali estava ela. O jornal, que superara a trauma inicial, continuava, contudo, espalhado pelo chão. O homem o recolheu calmamente, embolando-o conforme realizava a tarefa. O jornal tentou pedir por ajuda, mas não passavam de ruídos. Nada a ponto de chamar a atenção de um vizinho curioso. Terminado o trabalhou, o homem jogou o jornal no lixo, tampando a lata com imensa satisfação.
 Com o rosto aliviado, saiu da cozinha e foi para a sala, acomodando-se no sofá. Tirou os sapatos com os próprios pés e os deixou em contato com o piso de madeira. Esticou-se à direita, pegando o controle da televisão e ligando o aparelho. Um carro descreve curvas sinuosas em uma paisagem exuberante ao som de uma música conhecida, intercalada por mensagens de como é bom aproveitar e viver a vida. O homem se permitiu relaxar ainda mais, afundando no sofá. Seus olhos foram se cerrando até ficarem praticamente fechados.
  - Morreu hoje Robaldo. Os detalhes de sua morte ainda são – seu primeiro impulso foi fechar os olhos por completo e forçá-los a permanecer assim até suas expressões faciais passarem a pedir por ajuda. Em seguida, suas mãos se chocam violentamente com os ouvidos, na tentativa de obstruí-los de qualquer som.
 - Mas não a dúvida da falta que tão grande homem – não era possível. Seria a voz produto da sua própria mente? Seus dentes se apertam violentamente e os músculos da mandíbula são claramente visíveis, tal qual os capilares do pescoço.
 Todo o seu corpo parecia ter adentrado em um prefácio para um enfarte. Falta pouco, muito pouco. Seria uma solução. Não era isso que o mundo esperava dele? De todos os seres do planeta, ele parecia ser o único que nunca ouvira falar de Robaldo. Como Robaldo lhe escapara ao conhecimento senão por sua própria vontade? Se alguém tão bom tão maravilhoso tão... Robaldo não o quis como amigo em vida, – este mesmo alguém que teve amizade com todo tipo de gente, de forma que não seria exagero dizer que se estivesse lá no princípio seria amigo de Caim e Abel – então é porque ele não presta. Em essência. Todo o seu eu. Nada mais justo que se eliminar. Uma eutanásia, dado o contexto que se encontra. Talvez em morte! Sim, talvez Robaldo deixasse de lado todas as suas falhas e aceitasse tê-lo, não, ainda não como amigo, seria muito? Não importa. Se aceitasse sua companhia, seria suficiente: Descansaria em paz.
 Sem abrir os olhos, suas mãos procuraram às cegas pelo controle remoto. Encontrando-o, elas se uniram, segurando-o como se fosse um revólver. Segurou-o por alguns segundos à sua frente, como se o admirasse. Não o que segurava em realidade, porque seus olhos continuavam fechados. Aproximou-o ainda mais, encostando-o por baixo do nariz. Inspirou demorada e fortemente, permitindo-se sentir o cheiro da pólvora. Quando espirou, relaxou os ombros e abaixou o revólver, posicionando-o sob o maxilar. Respirou mais uma vez e apertou o gatilho.
 A bala atravessa a cabeça do homem, abrindo passagem de ponta a ponta, para isolar-se no teto após fazer com que seus miolos explodissem cinematograficamente. A falta de vida fê-lo abandonar-se. As mãos soltaram o controle, o corpo se largou no sofá e o pescoço cedeu para trás.
 Branco. Sem perceber, passou a enxergar o teto do apartamento. E não havia buraco da bala onde deveria haver. O homem então ergueu a cabeça com dificuldade – pesada, como se estivesse mesmo morta – e olhou para baixo, encontrando um controle remoto e não uma arma. Ainda não conseguia responder se tudo não passara de pura encenação ou se estava alucinando no pós-morte. Caso fosse a segunda opção, o homem decidiu que chegaria na seguinte conclusão: Morrer é um saco. Contudo, ao perceber que a recente experiência lhe deixara – por mais estranho que pareça e isso levando em conta até mesmo o que lhe acontecera recentemente – uma ereção, concluíra que morto não estava. Por motivos óbvios.
 - A prefeitura pede a todos que evitem a utilização de automóveis amanhã, visando melhorar a circulação e o acesso ao funeral. Considerando o grande defensor do meio ambiente que Robaldo fora em vida, este jornal reforça o pedido, apoiando-o totalmente.

 O sol estava à metade do meio dia quando o homem abriu a porta. Parecia que o próprio amanhecer estava de luto – tanto que impedia qualquer objeto de ter cores vivas ou alegres para passar o dia. Todas as outras portas e janelas estavam fechadas. Então ele tratou logo de se adiantar e fechar a sua, que produziu um rangido melancólico e triste. O homem ajeitou o casaco e colocou o pé na rua. Não era o único. Antes de colocar o próximo, deteve-se a observar os demais: Algumas poucas pessoas que iam todas na mesma direção, rumo a uma avenida que despontava alguns quarteirões à esquerda, num mesmo ritmo funerário.
 Então, juntou-se a elas.
 E virou a esquina.
 O panorama que se seguiria inicialmente fora planejado como uma grande e larga avenida, que em algum momento de sua extensão, possuiria uma ponte, visando frisar o quão comprida se tratava deste segmento de asfalto. Porém, não havendo razão temática ou dramática para tal – ou seja, nem Robaldo nem seu funeral ganhariam alguma coisa com isso –, a citada obra de engenharia que permitiria cruzar este certo curso de água fora eliminada do projeto da cidade. Tal qual o curso de água. Isso não impedia, contudo, certos elementos essenciais de continuarem... Essenciais:
 1. O número de pessoas que percorriam em sua peregrinação religiosa a avenida, na esperança, ou melhor, na fé de que em algum momento despontariam de frente para a Catedral. 2. O sol que se erguia lenta e penosamente fazendo com que toda essa massa humana projetasse sombras para trás e à esquerda, como se estas próprias, por não constituírem matéria, estivessem desejosas de dar meia volta, de não serem fortes suficientes para ver Robaldo morto.  3. Parecia não haver carro nenhum a usar a avenida ou nenhuma de suas ruas afluentes.  4. O olhar perdido com que o homem observava a tudo isso, em seu plano geral. Tão perdido e abobalhado foram os passos que o carregaram até a marcha. Se tivesse notado seu próprio movimento, pareceria que seu corpo simplesmente se jogara para frente, movido por nada, e que o restante simplesmente tentou acompanhar. Não que isso fosse simples, ou muito menos lógico.
 Tornar-se parte daquilo permitiu ao homem uma observação mais próxima do que ocorria em meio aquele amontoado caótico de gente em contato com o asfalto quente. Quando seu pescoço decidira ir pra esquerda, sua cabeça acompanhou e os olhos não tiveram nem tempo de pensar a respeito. Assim, com o mesmo atordoamento que se tem ao se ser retirado da cama em uma hora extremamente inconveniente da manhã para uma situação nem um pouco urgente, seus nervos oculares traduziram a imagem que se descrevia ao seu lado.
 Um velho seguia o ritmo de seus iguais com um dos pés engessado e duas muletas que lhe permitiam o progresso. Todavia, era costumeiro que vizinhos o ultrapassassem uma hora outra. Tomados muito provavelmente por aquele pensamento de que se não se apressarem, todos os ingressos se esgotarão. Até que semelhante raciocínio resolveu cair sobre o velho, que sem pensar duas vezes abandonou as muletas e passou a rastejar – o que o deixaria particularmente mais rápido, contudo.
  Assustado talvez pela velocidade do velho, o homem se deteve, permitindo que o velho representasse todo seu movimento por meio da imitação sua visão. Mas logo outros caminhantes se chocaram com ele e muitos outros vinham atrás em fila com o mesmo intuito, forçando-o a deixar seu espanto de lado e continuar. Seus pés evidentemente aprenderam a lição, porque quando viu o que viu em seguida, estes continuaram enquanto o que estava acima foi atrás apenas por pequenas questões de anatomia.
 Três dromedários seguiam em fila indiana, amontoados de quinquilharias nas costas, além de três senhores distintos que se vestiam de forma igualmente distinta. O primeiro deles se apresentava como alguém saído de alguma fábula árabe. E, consciente disso, parecia se esforçar ainda mais para entrar no personagem – o que conseguia por meio das expressões que carregava no semblante reconhecidamente étnico. O segundo, negro e calvo, estufava a barriga – marcada por estrias esbranquiçadas que, mascaradas de fé cênica, passam a ser cicatrizes de guerra – ao mesmo tempo em que fazia notar os músculos dos braços, que iam contra as argolas de latão pintadas de dourado, próximas de se romper. Sua boca se fechava de forma carrancuda e superior. O terceiro, o homem reconhecia, e era um velho japonês que tinha uma loja de eletrônicos a poucas quadras de sua casa. Porém, de cima de sua montaria, apresentava-se como um senhor do extremo oriente, vestido em uma armadura samurai. Carregavam, respectivamente, mirra, ouro e incenso.
 Então o olhar do homem pulou do senhor nipônico para a quarta e última figura.
 Atrás, uma mulher toda de branco e com o rosto coberto por um véu, que após uma observação mais cuidadosa, constatou se tratar de uma noiva, seguia fielmente os três magos orientais. Seu vestido matrimonial brilhava incessantemente, porém, todo o brilho sumia ante a claridade da manhã, sobretudo, da manhã do funeral de Robaldo.
 Em outra ocasião, os três reis-magos e sua estrela-guia – que teriam abandonado o nascimento de um novo Cristo para comparecer ao funeral – pareceriam apenas quatro lunáticos que se vestiram de forma exótica em um dia qualquer para chamar atenção. Ou talvez, três lunáticos e uma noiva mais doida ainda que deixara a cerimônia ao se apaixonar por um dos dromedários quando já no altar. Entretanto, não sendo um dia qualquer, como todos bem sabem – com exceção do homem, que se encontrava em um estado de transição, ou melhor ainda, iluminação –, qualquer necessidade de atenção ou amor inter-racial estão perdoados e se vê em toda aquela loucura uma homenagem ao protagonista da história: Robaldo.
 E não era a única. Metros depois, o homem uma longa fila de pessoas vestidas de preto que se chicoteavam a cada passo dado, em punição por terem deixado Robaldo morrer. Não havia duvida para nenhum daqueles flageladores que algo poderia ter sido feito para evitar o ocorrido e, portanto, só restava o castigo eterno por terem falhado em algo tão importante para a continuidade da vida como a conheciam. Por um momento, pensou se o aceitariam como um dos seus ou se pelo menos lhe emprestariam um chicote. Estaria se punindo não só por não ter impedido o trágico acontecimento, mas também por não ter sequer conhecido Robaldo – o que, na mente de qualquer um que percorria a ponte naquele momento, por si só já seria castigo suficiente.
 O sentimento de perda daquilo que nunca tivera serviu-lhe muito bem de chicote e se apegou a ele com o amor que poderia ter dado a Robaldo, caso o tivesse conhecido em vida. Entre cada chicotada, contudo, uma parte de sua mente sugeria se tudo aquilo tinha sentido, se ele deveria mesmo se considerar culpado e declarar ele mesmo sua condenação pela morte de alguém que nunca conhecera. Apenas para ser silenciada com o estalar, seguido da dor dos espinhos fincados em seu cérebro, que se tornava insuportável com a retirada dos mesmos, que saíam rasgando o que já haviam furado.

 O homem estava a cair de joelhos quando, finalmente, o contorno da Catedral surgiu no horizonte. Sua boca estava seca e rachada, seu rosto se desmanchava em suor e o sol continuava a castigá-lo, precisamente de cima. Da mais alta das torres, uma cruz subia rasgando o céu. A construção, como um todo, era realmente impressionante e seria interessante descrevê-la nos mais mínimos detalhes, destacando a genialidade do arquiteto responsável e explicitando o tempo gasto para o termino da obra e todas as dificuldades que foram superadas. Todavia, pouco antes um outdoor emoldurara uma foto de Robaldo. Os braços estavam abertos e por sobre os ombros de outras duas pessoas, mas estas tinham suas identidades cortadas pela dimensão da moldura. Aquele sorriso inocente e sincero deu forças ao homem para terminar a jornada.

 O coveiro enlouqueceu de vez. Isso seria uma conclusão válida, considerado os caixões empilhados conforme eram despejados à porta da Catedral. Todavia, vale suscitar que o comentário maldoso acerca do estado mental do coveiro denotava loucura. E toda essa pirâmide múltiplas vezes funerária poderia significar apenas um dia de folga sem aviso prévio e a coincidente falta de pessoas previamente treinadas para cavar um buraco na terra que o pudessem substituir. O que justificaria acusá-lo de qualquer distúrbio mental seria o fato de toda aquela madeira preta estar pegando fogo. No entanto, o coveiro realmente tirara o dia de folga e já estava dentro da igreja. Quem tratava de jogar os caixões e colocá-los devidamente em chamas era a própria família de cada um dos desafortunados que tiveram o azar de ter o enterro marcado justamente no dia do funeral de Robaldo.
 A morte de Robaldo fizera com que todas as funerárias optassem por antecipar a entrega dos mortos, de forma que os caixões tivessem dormido à porta da Catedral. Não só os do dia coincidente propriamente dito, mas os de toda a semana. Esta estratégia se aplicou a outros tipos de negócios. Por exemplo, muitos entregadores decidiram que para terem o dia seguinte livre deveriam entregar o máximo de pizzas possíveis. As encomendadas e as que viriam a ser. Isso não foi lá muito bom para as pizzarias e seus donos que acabaram fechando mais cedo. Não que pizzas e cadáveres tenham alguma relação.
 Voltando ao segundo grupo, ou melhor dizendo, às suas famílias: Estas, sabendo do trágico ocorrido, tentaram de todas as formas cancelar os ritos funerários encomendados. Mas já era tarde demais. Restou-lhes o óbvio. Vestiram-se para os enterro de Robaldo como se fosse para os de seus entes queridos e falecidos, foram ao enterro como se fosse o de seus entes queridos e falecidos e chegando lá, vendo os caixões de seus entes queridos e falecidos, trataram de dar um destino rápido aos restos mortais dos seus entes agora queimados e falecidos.
 O homem ignorou, como pôde, o cheiro de carne e ternos e vestidos caros queimados e se amontoou à porta da Catedral com muitas outras pessoas, no sonho – porque “tentativa” seria muito irreal levando em conta o número de gente que chegou e chegava por Robaldo – de entrar. Sua determinação era evidente em meio a tantos ombros, cotovelos, braços, mãos, pernas e joelhos e pés. Foi-se empurrando, sem se importar com esta criança ou aquela velhinha, até que conseguiu.
 Dentro da Catedral a situação não era menos animadora. As paredes pareciam cada vez mais que fossem ceder devido à quantidade de pessoas que se aninhavam dentro de seus limites obviamente limitáveis. Movendo-se, ou o mais próximo possível disso, por essa enorme massa humana, o homem chegou até uma escada. Subiu-a com a mesma dificuldade – porque até os degraus estavam ocupados –, mas ainda assim, chegou ao segundo andar, de onde teria uma visão melhor das naves e acima de tudo, do altar – que fora removido para dar lugar ao caixão de Robaldo.
 Lutou por um lugar à beirada, agarrando-se ao encosto de madeira com força. Alguns vizinhos o empurram de início, irritados, para depois se acostumarem, ou melhor, ignorarem-no em favor de Robaldo. Todos os olhares sob o sacro teto dirigiam-se a um único ponto e o homem não excedia a regra. A cada segundo o caixão parecia mais próximo. Podia quase tocá-lo. E, de repente, seu transe se quebrara por um som esganiçado e velho, um soluço, que então desatou a chorar. Virou-se para contemplar o que era. E do mesmo jeito muitos em volta imitaram, fazendo um círculo em volta da velha lacrimosa. Meu filho! Mamãe! Como! Não! Justiça! Justiça! Por Deus! Por ele! Robaldo! Seria a velha mãe de Robaldo? Ela?! O homem se lançou violentamente, tentando romper o perímetro que se formara. Empurrou, socou, jogou e arranhou, conseguindo pousar sua mão sobre o ombro dela. A velha o encarou, de olhos molhados mas curiosos. A senhora é mãe de Robaldo? Como? A senhora. É a mãe de Robaldo? Era como um filho... Para todas nós! Mas a senhora... Ele veio da senhora? Era como se carregasse uma parte de cada uma de nós! Justiça! Por Deus! Justiça! Não! Quer dizer, a senhora cuidou dele?! A senhora... Quem dera tivéssemos cuidado melhor dessa criança tão boa... A culpa é nossa! Nossa! Sua e... Cala a boca!
 O homem se jogou contra a velha, mas alguém próximo o deteve, jogando-o para trás. A multidão à volta se enfureceu e ele foi sendo empurrado. Alguém empurrou demais.
 A cada segundo o caixão parecia mais próximo. Podia quase tocá-lo.
 E o tocou.
 O silêncio tomou conta da Catedral. E era como se esse próprio reproduzisse o choque do corpo do homem com o sarcófago de Robaldo. Olhou-se, em estarrecimento. Perguntou-se quem era aquele que caíra partindo-se e consigo madeira e metal, por um momento.
 O momento passou. E todos avançaram na direção do caixão. Queriam uma parte de Robaldo. Se aquele estranho a tivera, tinham também o direito.